Textículos do trono #1
Brigas de bar, a história de um grande sujeito e o planeta Júpiter.
Durante o expediente, há a hora sagrada de ir ao banheiro. Para que você não entre em colapso descendo a tela das redes sociais, estreio aqui no Dias Maquinais (a publicação mais caótica do Substack) o quadro Textículos do Trono, que surgiu em Fevereiro de 2025, lá no Medium, sob o nome de Textículos para ler na cagada remunerada. Em breve publicarei aqui os outros quatro capítulos que foram postados por lá.
A ideia da coluna está na publicação de um compilado de textos pequenos (por isso textículos), escritos sob uma honesta expressão da revolta de um jovem sobrevivendo, à contragosto, às arapucas capitalistas na rotina desses Dias Maquinais.
Espero que se divirtam com o formato:
Ratos
Roberto soprou a fumaça pro alto e pensou no que havia acontecido aquela tarde. Sentado no meio fio, ele esperava o Uber enquanto se perguntava: — “Deus do céu, por que colocas tanta confusão em meu caminho?”. As lembranças voltavam à sua mente como um filme.
Por volta das duas da tarde, todos estavam bebendo e falando alto, enquanto Sergio assava a carne na churrasqueira. Juan narrava as histórias da sua vida, como sempre, levando todos aos risos. Roberto escondia os olhos vermelhos de maconha atrás das lentes do Ray-ban e viajava com a torrente de pensamentos que inundava sua mente.
Cerveja vai, cerveja vem, a falação de merda começou. Normal, todo bebum sabe que, em algum momento, alguém da roda vai abrir a sessão do desperdício de palavras. Sob aquele sol escaldante, o cheiro de picanha assada e a playlist de axé na JBL, foi o sr. Anderson quem abriu mais uma edição do Especialistas de Porra Nenhuma. Começou a falar de cinema.
— Pô, vocês já assistiram o novo Top Gun? — perguntou, enquanto abria a garrafa de Heineken com a camisa.
— Vi não, ó — Sergio respondeu, estendendo a tábua com os cortes da picanha. As mãos atacaram a carne e nada sobrou — É bom?
— É… mais ou menos. Dá para assistir, mas sou mais o original, pô — disse Anderson, nostálgico. Sua voz foi abafada, pois mastigava dois pedaços da picanha.
— Ai, o Tom Cruise continua um gato — Ana disse, interrompendo uma selfie para fazer o comentário. Maria e Joana concordaram em seus lugares.
Juan virou metade de uma lata num só gole. Arrotou e abriu outra. Provocou:
— O óculos do Van Damme é igual o do Roberto — disse, gargalhando em seguida.
Todos sorriram. Roberto respondeu:
— Comprei com sua mãe — e riu alto, zombando. Juan levantou o dedo do meio.
Nesse momento, chegou Maroca, tia de alguma daquelas pessoas que estavam sempre na casa de Juan. Ao vê-la, Roberto mergulhou na piscina. Como de costume, a velha pegou o bonde andando e levantou a polêmica do dia. Sentando-se numa das cadeiras da roda e abrindo sua Heneiken, perguntou:
— Vocês viram que o PT está fazendo de tudo para a Fernanda Torres levar o Oscar?
— Eu vi — respondeu Anderson — E vamos combinar que o filme nem deve ser lá essas coisas.
— Eu não vi e nem vou ver — Maroca declarou, sacudindo o indicador para o alto — Só de não mostrar o outro lado da história, já dá para ver que é filme de comunista.
Além de evitar a velha Maroca, Roberto nadava na intenção de rebater um pouco da embriaguez. Enfiar a cabeça dentro da água e fingir que sabia nadar sempre lhe trazia uma sensação de liberdade. A desvantagem é que, mesmo submerso, ainda era possível ouvir o que as pessoas conversavam na superfície. Ouviu quando Maroca esbravejou: “Ditadura nunca existiu”, fazendo seu comparsa Anderson gargalhar.
Saiu da água em meio às risadas. Deu a volta na piscina e foi até a saída, no pé do portão principal da casa. Abaixou-se e pegou algo com as mãos. Fez o caminho de volta, mas antes de chegar à mesa, atirou o treco à meia distância, que fez um arco no céu e caiu no colo de Maroca. Era o cadáver de um rato.
A velha caiu de costas, as pernas esticadas em “V” com aquele bicho fedorento sobre sua barriga lipoaspirada, exalando um forte odor pútrido de carniça. Todos da mesa se levantaram num susto, gritando. Caiu prato, lata, celular, protetor solar e tudo em quanto no chão. Olharam boquiabertos para Roberto, depois para Maroca.
Ana gritava enquanto segurava a cabeça com as mãos. Sérgio tentava, de modo desajeitado, catar o que fora derrubado. Anderson vomitou no pé da palmeira vizinha à piscina.
A velha Maroca gritava, pedindo por ajuda e sacudindo os braços. Roberto a olhava.
— Sabe o que é isso, Maroca? — perguntou, despejando cerveja na mão e esfregando-a, como se estivesse lavando com água e sabão.
— Socorro, tira isso daqui — a velha gritava e se debatia. Roberto se aproximou e apanhou a criatura pelo rabo.
— Isso aqui — apontou para o bicho — é um instrumento de tortura! — sua voz sobressaiu à de Maroca. A velha se calou, mas estava ofegante. Roberto prosseguiu: — Minha avó foi presa na ditadura. Os desgraçados enfiaram um bicho desses na vagina dela, porra!
Roberto atirou o corpo do roedor. O cadáver espatifou-se ao lado do rosto de Maroca, que se levantou, catando coquinhos, derrubando as outras mesas do ambiente e correndo para longe enquanto gritava em desespero. Caiu na grama, rolou e ficou ali, incrédula, assustada, como se tivesse visto o próprio diabo.
— O outro lado da história é o caralho!
— Meu chegado — Juan interveio, com a mão no ombro de Roberto — Acho que por hoje deu. Melhor você ir para casa.
Maria e Joana correram para socorrer Maroca, que estava em estado de choque, caída no chão quente do sol. Roberto respirou fundo e, pelo amigo, se sentiu envergonhado. Mas só por causa de Juan, ele concluiu a si mesmo, mentalmente.
— Desculpa aí qualquer coisa — disse, já de costas para Juan, caminhando até a rua.
Sentou-se no meio fio, sacou seu celular e pediu um Uber. Acendeu outro baseado, deu dois tragos e soprou a fumaça para o céu. Começou a pensar no que havia acontecido aquela tarde.
Otávio deveria ser carteiro
eu acho que Otávio deveria ser carteiro. se ele fosse, não estaria preso em casa com medo do mundo lá fora. o mundo está cheio de idiotas e Otávio não é um deles. muito pelo contrário, ele é na verdade um verdadeiro gênio.
dia desses estive com ele e outros amigos. ele nos falou sobre Pitágoras. em outra ocasião falou comigo sobre Kubrick e Glauber Rocha. mas conversa sobre qualquer coisa. sabe muito sobre Belchior, Tim Maia e Pink Floyd. conhece muitos ilustradores, pintores, manja de história da arte e filosofia. é, eu poderia ficar aqui por horas.
a propósito, Otávio faz belíssimos desenhos. mas poderia ser cineasta ou pintor. ou arquiteto. artesão. sei lá, ele poderia ser várias coisas. acho que só músico que não. se eu fosse citar uma coisa que eu sou melhor que ele, acho que seria tocar instrumentos. ele entende muito de música, mas não toca instrumentos. bom, que se dane. isso não é nenhum demérito para ele.
se Otávio fosse carteiro, ele conheceria outras quebradas. assim, outros malandros seriam apresentados a ele. desse modo, mais pessoas o respeitariam. se mais pessoas o respeitassem, mais de sua arte estaria espalhada por aí e por consequência mais pessoas entenderiam a importância de Otávio para o planeta Terra.
outro dia eu mijei em um banheiro de boteco depois de alguns meses longe da bebida. das últimas vezes que bebi, foi em casa ou na companhia de conhecidos, geralmente em seus lares, à convite. eu não sou de beber sozinho. não mais. sozinho eu só fumo maconha, enquanto ando pelas ruas abandonadas de gente viva, na volta da labuta. enquanto eu mijava olhei para a parede acima do mictório e pude enxergar uma pichação. lembrei de uma vez que Otávio me explicou a diferença entre as pichações cariocas, paulistas e brasilienses. ele falava enquanto a brisa encontrava a água do mar em Copacabana.
quando saí do mictório fui embora do boteco. encostei em uma árvore e vomitei. me lembrei de quando cruzei a cidade completamente chapado de cantina da serra na companhia de Otávio. eu achei que ele fosse morrer e ele achou que eu ia morrer. certamente foram dias de ouro. qualquer dia pego um avião e vou até ele.
se morrêssemos ali, com a cara nos coturnos dos gambés que nos revistaram e nos bateram, morreríamos felizes. uma onda de ácido meses antes já me tinha feito pensar nessa possibilidade. talvez a surra fosse só uma ilusão. talvez eu esteja chapado até agora!
me lembro também de um baseado que ele enrolou, mas era só madeira misturada com tabaco. eu dei toda a certeza de que aquele pedaço de madeira que encontrei no banco da praça era uma cota de erva perdida. tentamos acender o badêgo por horas até perceber o que estava acontecendo e cair na real. rimos muito dessa presepada.
naquele dia, Otávio me disse que tentava ser feliz a todo custo e que se todos também tentassem o mundo seria um lugar melhor. eu refleti sobre isso e cheguei a óbvia conclusão de que realmente tem muita gente que não faz questão de ser feliz. o mundo inteiro vive com medo.
não sei se era o cheiro de mijo que é igual em qualquer boteco. não sei se era o resto amargo do teco na minha garganta. não sei se era a cerveja na cabeça. foda-se o que era, mas algo ali me pareceu familiar. talvez a proximidade com a sarjeta.
no outro dia fui trabalhar de ressaca. na cozinha, durante o café antes do expediente, vi um pessoal reclamando do país, falando de investimento, abertura de empresa, negócios e esse tipo de baboseira. corri para o banheiro e vomitei. dei sorte. quase fiz isso nos corredores. alguém deve ter escutado. até o Epocler estava com um gosto mais doce.
sendo honesto, Otávio bem que podia ser carteiro, tem um pessoal aí que precisava ouvir o que ele tem a dizer.
Estrela no céu
Olho para o céu assim que desço do ônibus e vejo uma grande e brilhante estrela solitária no céu. Torci muito para ser a Estrela D’Alva, a estrela do Botafogo, mas era apenas o planeta Júpiter, o que, por si só, não era um fato decepcionante, muito pelo contrário. Em todo caso, dei boa noite ao maior planeta do Sistema Solar.
Às vezes gostaria de sair da Terra. Para ser honesto, desejei isso várias vezes ao longo da minha vida, em diferentes ocasiões. Não como um escape (pelo menos não antigamente), mas no sentido literal da frase. Eu queria mesmo furar a estratosfera rumo aos confins do universo. A morte perfeita para mim seria à deriva no espaço, dentro de uma nave sem combustível, munido de uma garrafa de conhaque e minha solidão companheira.
Acontece que, quando eu era criança, meu sonho era me tornar astronauta. Depois que cresci, na adolescência, um amigo me apresentou o 2001, uma Odisseia no Espaço. E antes eu tinha ouvido o Dark Side of The Moon, que para mim era um disco com uma vibe espacial e cosmológica.
E, então, me tornei um adolescente fascinado pelo espaço sideral. Às vezes deitava no escuro do meu quarto, de madrugada, meus pais brigando e eu enfiava os fones de ouvido nos buracos das orelhas, deixava-os próximo de meu cérebro e sentia que estava flutuando pelo espaço. Anos depois, com o ácido lisérgico, fui parar na vastidão e solitude do cosmos, até perceber que era só efeito da onda.
Como é possível perceber, perco muito a linha do raciocínio. Eu estava falando que desci do ônibus e vi uma estrela no céu, que mais tarde descobri se tratar de Júpiter. Deslumbrá-lo foi a única coisa que me fez sorrir essa semana. Esses têm sido dias terríveis.
Essa última frase, originalmente, fora escrita no passado, dessa forma: “aqueles foram dias terríveis”, ou algo assim. Tive de apagar, pois não ficaria honesto. Os dias ainda são terríveis. O medo, o abismo e o inferno estão aqui, presentes em meu cotidiano. Essa lata de Spaten quente, o prato de comida vazio, as contas atrasadas e o bloco de notas com a crônica pela metade. E um expediente cumprido sabe lá como. Sou pontual, mas sou triste e não tenho vontade de trabalhar.
Aliás, nós todos somos tristes. Eu, Júpiter e essa cerveja pela metade.