Tive que abandonar o expediente para resolver um problema no meu apartamento. Maravilha, pensei, é uma boa oportunidade de morcegar umas horas de expediente. Mandei brasa em um baseado e, no caminho para o metrô, fui inundado por um grande volume de ideias, um tsunami de inspiração alagou a minha consciência. O calor castigava minha pele, que ficava grudada à camisa, graças ao suor. E, diferente do que é o meu normal, não resmunguei diante desse incômodo. Pelo contrário: tive as tais ideias e pouco me importei com o calor.
Infelizmente, devido à gravidade do problema — o vizinho do apartamento de baixo estava furioso — apertei o passo e não consegui anotar meus pensamentos, por isso, não pude criar um verso sequer. Tive de correr para saltar no metrô. Assim que sentei, precisei respirar fundo, pois meu coração de sedentário bombeava o sangue rapidamente, me fazendo ofegar igual fumante velho.
Me esforcei para lembrar de um pensamento que me ocorreu e me deixou empolgado no momento em que surgiu na mente. Fiquei louco para colocar no papel. Agora me arrependo de não ter parado por cinco minutos e anotar a porcaria da ideia. Vacilei, eu sei. Mas, enquanto pensava sobre meu erro, pensei numa outra coisa. Algo que me ocorre com certa frequência, até.
E se por acaso, cada vez que pensássemos, nós acidentalmente não estivéssemos criando realidades alternativas de nós mesmos, ou de nosso próprio mundo? Papo de doido, eu sei. Mas saca só. Esses dias pensei que um carro me atropelou e todos os meus entes queridos choraram minha morte. Subitamente, antes do médico assinar o atestado de óbito, eu despertei do coma, sentindo apenas as dores musculares e da perna esquerda quebrada, além de uns dias de memória perdida também.
Em minha mente, vi toda a cena dos meus irmãos vindo me abraçar, minha mãe se ajoelhando e agradecendo aos céus, minha esposa abraçando nossos filhos, uma reportagem dizendo “Escritor sobrevive a atropelamento. Família de Fulano da Silva Sauro já havia sido avisada da morte do escritor” e várias entrevistas sendo solicitadas da noite para o dia. Heroico! Quando esse pensamento se esvaneceu, eu tinha lágrimas nos olhos. Emocionei-me só de pensar! Subitamente, quando despertei da fantasia, nada mais era real. Foi somente fruto da imaginação fértil.
Eu vi, velho. Vi nitidamente a minha família chorar. Abracei cada um deles. Mas aquelas versões das pessoas que eu conheço simplesmente não existem mais. E se essa realidade pudesse ser acessada através do universo? E se por acaso isso não aconteceu realmente, em algum lugar da existência?
Fiquei pensando nisso enquanto o metrô cortava a cidade ao meio.
Poucos dias antes, o algoritmo do YouTube havia me recomendado um vídeo onde um psicólogo, ou psiquiatra, não me recordo ao certo, dizia que existe uma rara condição chamada devaneio excessivo, ou qualquer coisa do tipo. Os portadores desse transtorno apresentam sérias dificuldades em distinguir a realidade da fantasia. Em suas mentes, eles constroem enredos aprofundados, tramas complexas, profundas, o que causa sério problemas nas vidas dessas pessoas. Pesquisei à fundo e vi um vídeo do Dráuzio Varella falando desse troço.
Me lembrei desse vídeo minutos depois de ter levantado no coma e abraçado minha família. Naquele momento me auto diagnostiquei com essa merda de devaneio excessivo. Pensei: bom, é isso, tenho um transtorno mental grave e devo reportar à minha família. Me imaginei comunicando o fato à todos, enquanto estávamos reunidos numa roda, após um domingo de alegrias. Falei calmamente, aceitando meu destino como bom estoico, tranquilizando cada um, explicando que aquilo não era o fim.
Novamente lágrimas, abraços, emoção e eu no metrô com uma lágrima descendo no rosto e percebendo mais uma vez que eu estava atolado em um pensamento tão imersivo quanto um sonho ou a própria realidade. Quando me toquei disso, fiquei levemente assustado, mas estupefato com o poder da minha mente. Mais ainda com o poder daquela erva. Jesus, Maria, José! Que poder há nessa plantinha, hein? Bebi uma água e me recuperei.
Cheguei em casa, almocei e fomos de Uber até o apartamento, eu e minha mulher. Chegando lá, o mestre de obras do condomínio pediu que eu abrisse a porta, eu assim o fiz e ele resolveu o negócio em menos de 10 minutos.
Depois que o sujeito foi embora, agradecendo e se desculpando pelo infortúnio, olhei incrédulo para a minha mulher, a troca de olhares que só nós dois entendemos. Eu disse:
— Que buceta. Cortei todo o DF por causa de uma fita veda rosca.
Ela sorriu e nós partimos de volta. Ela para casa, eu para o escritório. No caminho pensei no cano vazando água, na fita veda rosca e nos universos paralelos que nossas mentes são capazes de construir. Fiquei pensando na minha versão atropelada por um carro. Ele estava em algum outro universo, nesse exato momento, se recuperando, com a perna engessada, erguida por uma corda, na cama de um hospital, assistindo Vale a Pena Ver de Novo e comendo comida sem sal. Será que ele pensa em mim? Será que eu mesmo não sou uma criação de sua mente?
Voltei a meditar no desagradável fato de que ultimamente eu tenho escrito muito pouco em relação ao volume que eu gostaria e pensei que talvez eu tivesse mesmo que ter os tais devaneios (não tão) excessivos para terminar meus projetos não concluídos.
Mas é um diabo mesmo, nada está bom para a gente. O ser humano é um bicho PARA LÁ de ingrato.
Que coisa, não? Eu comecei a falar desses devaneios excessivos com a intenção bobinha de insinuar que eu devo sofrer disso, mas meu Jesus Cristo, isso é uma coisa terrível demais. Peço perdão a todo o Olimpo! Por favor, se for para eu ter qualquer doença, que NÃO sejam os devaneios excessivos.